Ainda existe marginalização ao hip hop?

Capa do àlbum "Coletânea Racionais MC's" (1994)
O ano é 2019 e o rap alcançou respeito e popularização. Porém nem sempre foi assim e muitos daqueles que não estão no mainstream ainda sofrem com a marginalização. Conhecer como está esse cenário é o que vai nortear as perguntas que procuram esclarecer a realidade.
Provavelmente, as maiores referências nacionais do começo do rap são o grupo Racionais MC's e o rapper Sabotage, ambos carregando em suas letras a luta contra marginalização, sobretudo dos negros.

Sabotage na reportagem sobre sua vida no Domingo Espetacular
Se apegando ao conceito de que o indivíduo marginalizado é aquele que por algum motivo - geralmente por preconceito na construção de um estereótipo - não se integra num meio social, grupo ou atividade; vamos tentar entender um pouco dos motivos através de casos com esse tipo de preconceito incômodo à cena.
Esse ritmo envolvente e, que, cada vez mais cresce, passa constantemente por mudanças de temáticas no seu conteúdo. Hoje existem várias vertentes dentro do ritmo, atingindo novos públicos. No início era cantado a realidade da periferia, justamente das pessoas à margem do âmbito social e excluídos das políticas públicas.
Inserido nas adaptações temáticas e na produção de sentido do estilo são necessárias na maioria das músicas as rimas. Elas encaixam no beat trazendo artifícios da linguagem que são usados por muita gente no dia-a-dia, mas que quando expostos em músicas, incomodam um grupo de pessoas. Fenômeno parecido ao que o funk sofre.
Traduzindo isso para a realidade, desde o Mc que está mais exposto até o ouvinte com seu fone de ouvido pode receber os reflexos da marginalização. E não são somente pessoas, espaços também tem o preconceito voltado a si. Muito disso tudo por conta da estética: de aparência ou da música. Aquilo que é visto ou ouvido tende a não agradar todos. Sejam os palavrões, pleonasmos, gírias, tatuagens, o grafite nas paredes, etc. Isso e mais um pouco é marginalizado.
Como isso acontece na prática?
Quem está nos holofotes e os primeiros a sentirem o reflexo são aqueles que trabalham com o movimento hip hop.
O Mc provavelmente é aquele que sente mais na pele quando ocorre situações de marginalização, pois a resposta contra isso normalmente se encontra no conteúdo de suas músicas e no comportamento perante o mundo.
Um dos mais recentes e promissores Mc’s de Juiz de Fora, Brendon, conversou com o portal Rap JF sobre a visão que ele tem desse entrave. Ele acredita que fora do país a situação é mais tranquila. Isso acontece porque o Rap se tornou o estilo musical mais ouvido mundo, desbancando o rock. E principalmente nos Estados Unidos o ritmo é consumido a mais tempo, feito com bastante qualidade e investimento, alcançando padrões diferentes do resto do planeta.
No Brasil, apesar de um bom caminho percorrido, existe muito para ressignificar em torno do problema. “Essa marginalização acontece por ser um gênero feito por negros, com os negros sendo vistos, reverenciados, reconhecidos. Quando um branco está fazendo rap a marginalização não chega. Então o preconceito tem cor.”, esclarece Brendon. Falando sobre a cidade, ressaltou a falta de espaço para o rap, no objetivo de espalhar essa cultura para mais e diversos lugares.
Atualmente o Mc declara que não tem sofrido fortemente os reflexos da marginalização. Mas que já ocorreram ocasiões injustas: “quando batalhava, ano passado, aconteceu no bairro Santa Luzia durante uma batalha da polícia chegar oprimindo todos que estavam ali e apreendendo os equipamentos de som”.
Não são raros esses tipos de acontecimentos. As instituições públicas normalmente dificultam a realização de eventos dessas expressões culturais. É interessante pensar que um movimento vindo da rua, enfrenta impasses para acontecer onde nasceu.
Brendon fez recentemente a transição "normal" das batalhas para fazer música. Ele se diz satisfeito com o que fez na época das rodas de rima e resolveu se lançar para carreira solo com essa constatação própria. Perguntado se houve mudanças na marginalização ao sair das batalhas, o Mc fala da manutenção da realidade: “individualmente não chega muito em mim, é mais institucional”.
E para quem dança no sinal?
A situação da marginalização atinge aí pontos preocupantes. Sobretudo quando quem está dançando é mulher. Quem contou um pouco da realidade de uma b-girl foi Camilla Luiza, conhecida como Siamor.
B-girl é a pessoa do gênero do feminino que se dedica e dança o breakdance. Siamor se divide entre Minas Gerais e São Paulo, espalhando sua arte pelos estados brasileiros.
Infelizmente para ela a marginalização acaba sendo óbvia diante de tudo que sê na realidade nacional. “Quando vamos dançar na rua, num farol, muitas pessoas não nos veem como artistas ainda, algumas delas nos consideram vagabundos ou aqueles que querem uma vida fácil”, lamenta a b-girl.

Siamor (arquivo pessoal)
O enfrentamento do preconceito para os artistas não é fácil. Normalmente quem dança pela cidade se “acostuma” a viver ocasiões de preconceito. Siamor consegue encarar as ofensas que recebe de forma inesperada, para ela o auto reconhecimento enquanto artista é fundamental para ter consciência do comportamento: “lido com a mente mais ampla, porque na minha visão somos todos iguais e estamos aqui pra buscar igualdade, então quando alguém acha que pode ser mais eu digo que somos iguais”.
Um dos fatores que mais influencia na marginalização no caso da b-girl é o fato de ter várias tatuagens. Há quem ache completamente antiquado esse tipo de visão em relação à tatuagem, porém muitos problemas ainda giram em torno de quem desenha o próprio corpo.
Ter um direcionamento de como agir nas situações mais tensas do preconceito não é nada fácil. Estar exercendo sua arte, a qual se identifica e ama é essencial para a manutenção da motivação diante do entorno que complica seu trabalho. “É gratificante saber que posso conquistar coisas através da cultura. A dança me traz um sentimento de paz e liberdade ao poder me expressar, ser capaz do que nem posso mensurar. Fazer parte disso me faz ser melhor e uma mulher bem mais forte diariamente”, declara Siamor.
A estética do espaço é julgada?
Sendo um movimento nascido da rua nem sempre é fácil transformar outros espaços que comportem a originalidade da cultura .
Em Juiz de Fora, um dos locais que mais combinam com o hip hop e recebe eventos do cenário local é a CasAbsurda. Localizada no Granbery, é uma casa num ponto central da cidade que recebe diversos tipos de eventos com expressões artísticas oriundas da rua. Ela surgiu em 2011 e cresceu junto com a ascensão do rap na cidade.
Foi umas das primeiras casas a abrir as portas para o movimento acontecer. Os primeiros eventos foram as “Rodas Absurdas” que aliadas ao coletivo Encontro de Mc’s fizeram as batalhas de rima acontecerem. No começo a adesão era pequena, mas a partir de 2013 houve um boom de crescimento.
Muito do sucesso da CasAbsurda acontece porque ela permite que o movimento tenha todos elementos dentro do espaço. O Mc, o grafite, o breakdance e os Dj’s atuam por lá. É um local totalmente grafitado e com demais intervenções artísticas, que tem parcerias com artistas que deixam seu trabalho exposto, além dos coletivos que fazem seus eventos.

Um dos moradores da casa é o Cadú. Vindo de Ubá, ele chegou em 2013, justamente na época que a CasAbsurda começou receber mais eventos. No contexto de marginalização o morador fala das precauções para que os problemas não aconteçam: “sempre tomamos cuidado, tudo acontece de 14hs às 22hs”. Entretanto, nem sempre é possível evitar. “Já aconteceu de um vizinho chamar a polícia às 21:30, alegando apologia às drogas e violência dentro da casa. Simplesmente porque acontecia um show de rap que o Mc cantava músicas autorais”. Na época eles ainda recebiam menores de idade dentro da casa. Com o acontecimento limitaram os eventos somente para adultos e sem alteração de horário.
Mesmo que sendo um espaço de abertura à cultura e bem recebido pela maioria, existem momentos que os reflexos do preconceito chegam.
Apresentação CasAbsurda
Cadu
A estética do corpo influencia?
O impacto estético para um espaço não foi determinante para que a marginalização acontecesse. Para uma pessoa pode ser diferente. Vamos descobrir isso com Lannys Marques, conhecido na cena como Corleone. Um Mc vindo das Batalha da Pista, em Bicas, e da BDC (Batalha do Coronel), em São João Nepomuceno. Hoje ele batalha e faz música em Juiz de Fora.
Para ele é difícil driblar os piores olhares da sociedade e dentro do âmbito familiar. Corleone assume sua personalidade complicada. Mais um dos componentes que dificultam sua inserção num mundo limitado por convicções. Seu depoimento chega a ser duro: “já sofri na pele com a polícia, de apanhar. E dentro de casa meu pai não aceita o rap”.

Corleone batalhando à esquerda (arquivo pessoal)
Tendo como referência seu comportamento e a forma que se apresenta, infelizmente a repressão fora de casa é normalizada diante dos padrões conhecidos. Aquele que está muito fora do usual acaba sofrendo. Seja pela estética ou pela cor de pele.
Mesmo com o histórico difícil, Corleone segue a linha de que hoje em dia está mais fácil a aceitação do rap. “Sinceramente há pouca discussão sobre marginalização, mas batalhando onde a cidade acontece, numa praça, nos misturamos com a população e não arrumamos problema”, explica o Mc.
Para terminar ele diz não se preocupar com tudo voltado contra seu jeito ser. “Eu sou assim e vou continuar. Não é normal ser parado pela polícia por estar em uma via movimentada da cidade ouvindo música ou fazendo freestyle (batalhando), e o policial alegar atividade suspeita”, declara Corleone.
Como entender a marginalização no Brasil?
Chegado o rap no território nacional, foi popularizado entre as pessoas que vivem no subúrbio. Logo o modo de abordagem era num tom agressivo, protestando aquela realidade que poucos enxergavam. A música trouxe a luz para aqueles acontecimentos "implícitos".

Configurou-se como uma estética do problema, em que se narram episódios de violência, de consumo de drogas e da dinâmica social do comércio de drogas lícitas e ilícitas, das péssimas condições de vida nos bairros periféricos e pobres (e o contraste destes com os bairros privilegiados), das condições de miséria e abandono e do acesso precário aos serviços públicos, do preconceito e da violência com que sofrem os negros.
Como dito no início, o principal propagador desses problemas sociais vividos pela periferia, foi o Racionais de MC's. Diversas composições falavam do tema com propriedade. Tornando-se referência para diferentes cenários espalhados do país. Umas das músicas que mais retratam isso é "Diário de um detento".
Literatura Marginal?
Um lado da literatura nacional que a sociedade pouco conhece, mas que está aliada a música e, em consequência, ao rap.
A palavra marginal tem sua definição como conhecemos atrelada a uma realidade da segunda metade século XX no Brasil. Quem deu origem ao conceito foi um grupo de classe média (geração mimeógrafo) que produziam conteúdo literário em torno de uma época ditatorial e tinha um modo de distribuição diferente do convencional, por isso à margem do centro de produção cultural.
Daquilo que entende-se atualmente quanto a literatura marginal, é fruto de acontecimentos do fim da década de 90 e começo dos anos 2000. Através de autores paulistas como Ferréz, Sérgio Vaz, Sacolinha e Alan da Rosa.

Quem explicou um pouco desse campo desconhecido foi a doutoranda em Letras da UFJF, Monique Ivelise. Como essas expressões culturais contemporâneas se propagaram nos ambientes periféricos, tanto a literatura marginal quanto o rap tem traços comuns. Durante seus estudos Monique trabalhou com o movimento hip hop e, hoje, foca suas pesquisas no funk e em ritmos derivados das culturas africanas.
A pesquisadora projeta um cenário positivo de evolução do combate à marginalização no rap. Sobretudo por um caminho percorrido nos últimos anos e pelos precursores no Brasil, por sempre terem música politizada de cunho social. Fato fundamental e condizente aos objetivos do movimento. “O rap por esses motivos chegou num patamar que é trabalhado como modo de conscientização nas escolas”, completa Monique.
Monique Ivelise (arquivo pessoal)
O funk brasileiro e o rap normalmente atinge públicos em comum por terem historicamente disseminação e popularização nas periferias.
Em contrapartida, o funk tem outra dinâmica de discurso. Trabalha comumentemente com erotismo e ilegalidade de atos da sociedade ocidental. Por consequência quem faz e/ou ouve acaba sendo associado a um preconceito, já que abordam fatos que boa parte da sociedade prefere apagar da realidade. Além desse esclarecimento dado por Monique, ela comenta a associação da marginalização com outros preconceitos, inclusive racial: “Meninos e meninas que se vestem como “funkeiros” são tratados de um ponto de vista ruim. A marginalização é bem pior para o preto. Sempre ouvimos: ‘isso é coisa de neguinho’. Também acontecem proibição dos bailes, o modo que se enxerga as letras, etc. Ou seja, há uma cadeia de preconceitos a serem quebrados para mostrar o lado positivo do ritmo sobre a vida das pessoas”.

Batalha do passinho, em Madureira, Rio de Janeiro (2018)
Ainda existe marginalização ao hip hop?
A pergunta que dá início a essa discussão agora tem muito mais possibilidades de resposta. Conhecer quem vive isso é essencial. Julgar vendo de longe, não sendo empático e criando estereótipos se parece muito ao que sofre a cultura vindo da periferia na história.
Depois de conhecer um pouquinho do que passa quem quer exercer o talento que lhe foi dado, tem-se uma base muito melhor sobre marginalização no movimento.
Então quem responde essa pergunta agora é você!
Depois de entender um pouco mais da marginalização no movimento, veja o que conhece sobre os
entrevistados e palpite sobre a cena do rap nacional.
Alguns fatos sobre os entrevistados
Agora responda sobre a cena nacional





